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Jornal O Hoje

Uma estrela sorrindo

O processo de produção do disco levou a filha de Leminski a uma pesquisa no acervo de fitas do pai

terça-feira, 2 de setembro de 201

Adalto Alves

 

Além de compositora, Estrela Ruiz Leminski, filha dos poetas Paulo Leminski e Alice Ruiz, é escritora, o que já lhe rendeu participações em feiras literárias e publicações em revistas

Estrela Leminski, filha dos poetas Paulo Leminski e Alice Ruiz, esteve em Goiânia com o marido, Téo Ruiz, em março, no encerramento da mostra Múltiplo Leminski, que ficou em cartaz no Centro Cultural Oscar Niemeyer. Na ocasião, eles fizeram três shows. São Sons, no Centro Cultural da Universidade Federal de Goiás (UFG), foi baseado no CD de mesmo nome, cujo espetáculo acabara de ser lançado em DVD, com músicas autorais. No Palácio da Música, foi a vez do show Essa Noite Vai ter Sol – Canções de Paulo Leminski, com a presença de Zélia Duncan. Por fim, eles mostraram um pocket-show na livraria Fnac do Flamboyant Shopping Center.

As canções de Leminski estão agora reunidas num álbum duplo, batizado de Leminskanções, que o casal, rebatizado de Estrelinski e Os Paulera, colocou à disposição nos endereços www.leminski.com.br e www.amusicoteca.com.br. Lá, é possível baixar os discos de graça. Os CDs físicos só ficarão prontos no começo de outubro. São 25 composições selecionadas numa porção de fitas cassetes e mesmo em guardanapos de bar. Oito delas têm caráter inédito. Para os arranjos foram usadas referências deixadas por Leminski e outras relacionadas ao que ele ouvia. Natalia Mallo e Fred Teixeira assinam a produção. O disco foi masterizado na Inglaterra por Ray Staff, que trabalhou com um monte de gente boa.

Essa Noite Vai Ter Sol é o nome do primeiro CD. Ele tem 14 composições de Leminski. A primeira é Desilusão. Um reggae desfigurado e mesclado com outros aperitivos. O baixo é viajandão. Pode-se dizer que Ogum, que não passa de três frases, flerta com a distorção do heavy metal e com a percussão do candomblé. A ideia contida em Razão move-se em espiral, feito um mantra, colorida por uma levada que lembra os anos 1980. Verdura é a canção mais conhecida de Leminski, porque gravada por Caetano Veloso em Outras Palavras. O arranjo de Estrela e Téo, por isso, é diferente e lânguido.

Não Mexa Comigo é cantada por Estrela e Arnaldo Antunes como se fosse um rock das antigas. “Quem espera não me alcança” é uma das tiradas impagáveis de Leminski. Se Houver Céu é interpretada por Zeca Baleiro. A combinação da sanfona com os violões transmite um ar meio country, a la Crosby, Stills, Nash & Young. Luzes, por sua vez, mistura a percussão do leste europeu com tiradas de velho oeste. Dela, saiu a frase que dá nome ao disco. A Você Amigo tem o andamento comedido interrompido por interferências eletrônicas. Não é uma letra fácil de ser musicada. Há um prodígio nas citações dos Beatles, no arranjo em crescendo.

Navio atesta o talento de Estrela como cantora que possui o dom de uma divisão invulgar. Embora Navio não corra o menor perigo de cair na graça popular. O clima onírico não permite tamanha aproximação com ouvidos acostumados a orientações espaciais menos expansivas. Mudança de Estação é candidata a buscar uma sintonia mais estreita com o sucesso, por meio do coro dos músicos e dos versos que falam em “gente bonita” e “noite de São João”. O otimismo alegre da canção contribui para que a missão seja bem sucedida. O mesmo não pode ser dito de Esta Voz Está Sendo Ouvida Em Marte, que, a partir do título, remete a instâncias de delírio distantes da banalidade.

Valeu recupera uma gravação original de Leminski ao violão, com o ‘r’ dos sulistas e uma voz que dá a certeza de que é melhor ouvir Estrela. Há um mundo de silêncio no final, até a entrada de Adão, com a junção de vozes e percussão ritual um tanto primitiva. Apesar de constar no encarte e na ficha técnica, a sexta faixa, Filho de Santa Maria, conhecida na voz de Zizi Possi, não se encontra na sequência baixada no site da Musicoteca.

 

Distraídos, venceremos

O segundo disco, Se Nem for Terra, Se Transformar, é formado por 11 parcerias de Leminski. Três com Moraes Moreia, sendo uma em trio com Zeca Barreto, duas com Itamar Assumpção e uma com Fortuna e Edvaldo Santana, Natalia Mallo, Zé Miguel Wisnik, Ivo Rodrigues, Alice Ruiz e até William Shakespeare. Fino. As colaborações, aqui, são mais intensas. A própria Natalia toca baixo e synth e canta na faixa de abertura, Diversonagens Suspersas, quilométrica e veloz, cheia de rupturas que beiram o trava línguas. Zélia Duncan, Ná Ozzetti, Serena Assumpção, Fred Teixeira, Du Gomide, Bernardo Bravo e Érico Viensci soltam a voz em conjunto.

Dor Elegante é uma das letras mais cativantes de Leminski. “Ópios, edens, analgésicos, não me toquem nessa dor, ela é tudo o que me sobra, sofrer vai ser a minha última obra.” Alice mudou a última frase para “viver vai ser a nossa última obra”. Sinais de Haicais tinha que ser uma homenagem à poesia de extração japonesa da qual Leminski foi, sem dúvida, um expoente. “Só existe um segredo, tudo está na cara”. As guitarras de Téo e Du Gomide deixam o clima psicodelicamente nebuloso. Transformar, de onde saiu o trecho que deu nome ao segundo disco, até parece um samba nas entrelinhas. Live With Me, a parceria com o bardo inglês, ficou maravilhosa na voz maravilhosa de Ná Ozzetti. Natalia e Du fazem companhia à cantora.

Estrela e Serena também cantam em inglês em Hard Feelings. A letra é composta de poucas palavras (des)conexas num caldo pós-moderno. Hoje Tá Tão Bonito fica a meio caminho de um blues. Tudo é híbrido e se recusa a uma estratificação clara e definitiva do que quer que seja. Os contornos são cambiantes, mutáveis e volúveis, em permanente alteração do que poderiam ser se, por acaso, fossem aquilo que dão a entender que são. Oxalá, com participação de André Abujamra, repercute a brincadeira nas frases “oxalá estejam limpas as roupas brancas de sexta” e “oxalá estejam limpas as roupas brancas da cesta”. A cesta está cheia da sexta ou vice-versa?

Assim, Sou Legal Eu Sei poderia ser um tecnobrega do Pará se não virasse outra coisa com o passar dos versos. “Sou legal, eu sei, agora só falta convencer a lei.” Tem uma alegria infantil embutida na canção. Promessas Demais é hipnótica como toda música pop deveria ser. Nóis Fumo encerra a vista às composições de Leminski com humor irretocável. As vozes de Estrela, Téo e Érico repetem uma toada caipira matreira. Swami Jr. assume o violão de 7 cordas. Resta esperar que Estrelinski e os Paulera voltem a Goiânia o mais breve possível para o show completo de Leiminskanções.

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